núria manresa &
roseli correia
Olá Roseli
Estou feliz por iniciar uma conversa com você! Meu nome é Núria, sou arquiteta, mãe e jardineira. Tenho me especializado nos últimos 4 anos, que é a idade de minha filha Rita, em cuidar. Cuidar segundo o dicionário vem do latim da palavra cogitare, cogitar e esta relacionado com o imaginar. Nestes últimos anos, em que o ambiente doméstico tem sido o cenário de minhas mais intensas experiências e reflexões, do aprender e desaprender e o imaginar tem sido uma importante ferramenta e é uma das metodologia que temos experimentado nas viagens aqui do grupo Jardins Viventes, logo te contarei mais sobre isso. Mas por agora, depois de ver seu lindo trabalho no narrar é resistir, fiquei com vontade de te escrever algumas imagens da minha história de ribeirinha urbana.
Vivo em Belo Horizonte na Bacia do Córrego do Leitão. Já morei em diversos prédios aqui na bacia, alguns à margem direita e outros à esquerda. Passei minha infância e adolescência andando sobre as águas do leitão sem me molhar e também quase sem vê-lo. Lembro da primeira vez que soube de sua existência. Chovia forte e eu olhava pela janela do quarto de minha mãe. Espichei a cabeça ao máximo que a grade da janela me permitia e logo o avistei, correndo marrom e caudaloso. Os carros como submarinos. E então meu pai me disse: esse é o córrego do Leitão. Eu devia ter uns 10 anos. No domingo seguinte fui contar para minha avó, que mora na região desde menina, como tinha sido assustador meu encontro com o Leitão, tive uma mistura de medo e admiração por
aquelas águas. Foi aí que ela me contou que costumava fazer deliciosos piqueniques às margens do córrego e inclusive NADAR. Nossa! Imagine só!
Em minha primeira infância morei por um breve período na zona rural de Sete Lagoas. Vivia descalça, no meio do cerrado comendo ameixinha amarela e pescando piaba na represinha do córrego. Na cidade, eu sentia e sinto uma falta danada de terra, água e mata. Aquela conversa com minha vó e aquele encontro com o Leitão fez eu me dar conta que embaixo daquele concreto todo houve ou/e havia na minha imaginação a terra úmida que sentia com meus pés na infância.
Aos 7 me mudei do sítio em Sete Lagoas e fui morar em BH. Comecei a estudar na Escola Estadual Pandiá Calógeras, a Escola também está na Bacia e eu ia e voltava de ônibus escolar. Foi pelas viagens de ônibus escolar que conheci uma paisagem que ficava bem ao lado de minha casa mas por onde eu não passava nos trajetos a pé de meu cotidiano. A paisagem que descreverei era o ponto onde alguns meninos do escola desciam. Tratava-se de uma espécie de lagoa vazia que os meninos atravessam para chegar em suas casas que ficavam todas bem juntinhas na montanha do outro lado. Eles desciam a baixada, que chamavam de barragem, apostando corrida. Parecia bem divertido. Quando chovia o fundo ficava enlameado ou até com um tiquim de água. Depois fui saber, provavelmente pelo meu pai, que aquela divertida lagoa seca se tratava da bacia de contenção do Leitão. Anos depois ela recebeu um tratamento paisagístico e passou a ficar sempre cheia, como é agora. Em 2018, eu com 31 anos, esvaziaram a barragem para uma manutenção de assoreamento e ao vê-la sem água voltei no tempo. Aquele esvaziamento foi uma festa de pescaria! Os pescadores urbanos lançaram suas redes, alguns dizem que chegaram a pegar 100kg de peixes, entre eles traíras, carpas e muitas tilápias.Não sei se esses 100kg é história de pescador mais que teve uma carpa de 9,5kg e 80 cm, teve! Deu até no jornal, rs.
Envio uma foto que um amigo tirou nesse episódio de pescaria da Barragem Santa Lúcia em 2018 e postou no facebook. Salvei essa foto com muito carinho e ela me faz imaginar cidades onde os escolares são barcos, em que o lanche pode ser pescado ao invés de comprado e em que as crianças escutam histórias de pescador ao entardecer. Envio também uma foto de uma barco escolar que tirei em dezembro de 2014 em viagem a trabalho que fiz ao Rio Xingu. Na época entrevistei pescadores atingidos pela represa de Belo Monte.
Junho de 2018 na barragem Santa Lúcia, BH, MG.
Foto: Daniel Carneiro
Dezembro de 2014, Vila nova, Xingu PA.
Foto: Nuria
Boa tarde Núria; grande satisfação em poder trocar essas impressões e memórias sobres as águas e seus territórios da/na cidade em que habitamos...
Me senti grandemente sensibilizada por sua escrita sobre suas memórias em relação ao Córrego do Leitão.
Minha trajetória com as águas começa a partir das memórias de minha mãe, que viveu sua infância e juventude às margens do Rio Piracicaba, na cidade de mesmo nome, em Minas Gerais...
Lavadeira desde a infância, nos entretíamos ouvindo suas histórias construídas na relação com este rio... Brincadeiras, trabalho, abundância, alimento, tradição, festas, sofrimento, alegrias, cumplicidade e um turbilhão de outros sentimentos experienciados a partir de um rio, que está morrendo aos poucos por causa da mineração...
Memórias que foram reacendidas e ressiginicadas com a chegada de Luís Felipe, filho amado e aguardado com muito carinho...
Que futuro deixar pra esse herdeiro, foi a questão que passou a me mobilizar desde então...
Todas as ações que foram feitas em torno do Córrego do Capão, curso d'àgua que acabou sendo apadrinhado por afinidade com meu trabalho é uma forma de externar uma resistência e a perseverança em dias melhores...
Cada dia me encanto mais com este trabalho, não só por viver e trabalhar no território, mas em especial por me enxergar e me identificar dentro de uma grande rede de trocas fraternas, recheada de cumplicidade e cuidados que se estendem até o quintal de minha mãe, com quem compartilho e alimento minha alma dos saberes tradicionais que coexistem naquela pequena, grande fatia de mundo...
Feliz demais em compartilhar esse momento com você!!!
Bjo
Compartilho com vc, imagem da nascente principal do Parque do Capão.
Olá Roseli,
Que bonita sua relação de afeto com as águas estar ligada à vivências com sua mãe e à um zelo pelo futuro de seu filho. Me toca muito essa sua intimidade com os rios.
Vcs saíram das margens do Piracicaba para morar nas margens do Capão a muito tempo? Pergunto pois fiquei muito curiosa com essa relação em rede fraterna entre os vizinhos que me contou. Como se formou essa rede? Vocês se encontram frequentemente? Como tem atuado no território?
De alguma forma esta rede te ajudou na criação de seu filho também?
Por aqui moro com meu companheiro e minha família em um lado do Leitão, minha mãe mora do mesmo lado. Na margem oposta vive minha irmã.
Elas tem sido uma importante rede de apoio para mim para as tarefas do ambiente doméstico e de cuidados. Vira e mexe uma delas faz almoço e leva pra mim. Ou tb vão lá para casa para cuidar de minha filha em dias que tenho muito trabalho externo. Além delas, a escola também funcionava (digo no passado pois estamos a quase nove meses sem aula devido a pandemia) como uma rede de apoio e um ponto central de atuação no território. Começamos no ano passado uma articulação entre os pais da EMEI. O objetivo inicial era fazermos alguns pontos de sombra no pátio da escola que é enorme mais muito árido, por isso não é tão usado como poderia ser. Trata-se de um grande gramado por cima de uma grande laje de concreto da garagem do sub-solo - parece que a sina aqui da minha região é essa crosta de concreto nos separando da terra. Esse pequenos grupo de pais que se reunia semanalmente para plantar e construir juntos o espaço escolar era de uma grande alegria. Acabávamos usando a escola um pouco como praça, mas uma praça diferente, construída por nós, dava gosto, sabe?
Assisti ao vídeo que me mandou "Debaixo do asfalto, o Rio! ". Adorei conhecer por imagens um pouco do seu rio. Ficou claro para mim que a meta de vocês é limpar o rio para poder nadar e pescar nele em 2025. Que incrível! Como tem sido essa movimentação?
Adorei também que o vídeo começa com o Art.225 "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e às comunidade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."
Obrigada pelo envio do vídeo, das fotos e por me contar um pouco de sua vivência.
Aqui está um programa para você…
Ribeirinhos Urbanos: Ribeirão Arrudas, ouça no spotify
Eba. Vou ouvir agora enquanto preparo o almoço
Obrigada
Oi Núria, li seu relato e fiquei comovida com as relações de carinho e afeto estabelecidas na sua família... Nesses tempos incertos, os cuidados nunca foram tão essenciais...
Minha mãe casou-se ainda jovem e junto com meu pai, vieram pra BH... Ela saiu de Rio Piracicaba, mas o rio nunca mais saiu de suas memórias...
O fim de semana passado foi meio corrido... O grupo q acompanha o Núcleo Capão resolveu participar da Semana Lixo Zero com uma ação de grafite e plantio na área do Parque...
É muito bom poder colher os frutos de uma ação em Educação Ambiental, que começou em 2012 numa escola pública da periferia de BH...
Naquela época tínhamos mais perguntas que respostas e foi indo atrás de experiências sensíveis, pautadas no cuidado com as Águas e em seus
territórios, que acabaram alimentando nossas práticas e esperanças de poder conviver com um córrego vivo! O Projeto Manuelzão foi essencial nesses primeiros passos...
Que incrível tudo isso, Roseli!! Vou te escrever com calma.
Muito obrigada por compartilhar.
Aproveito para te enviar também uma parceria entre a EMEI e a comunidade daqui:
Que experiência MARAVILHOSA!!!
Em qual EMEI vc realizaram essa horta maravilhosa?
Da vila estrela. Era onde minha filha ficava.
Que espetáculo! Produzir e ou oportunizar uma relação saudável entre escola e comunidade é o sonho de toda boa gestão... ou pelo menos deveria ser....
Linda experiência!
Bom dia Roseli,
Bacana demais isso tudo que me enviou. Fiquei muito curiosa em entender como o grupo se formou, é inspiradora essa relação com a vizinhança e
esse cuidado com o espaço.Como funciona essa organização por núcleos? O grupo começou nesta escola que me contou? Como começou? Você
falou de Educação Ambiental, essas ações começaram dentro da escola em uma disciplina ou projeto de educação ambiental? foi isso?
Este programa do Youtube é do Programa de Escola Integrada de uma escola da região? que incrível! A Dona Helena é moradora da região e tem
passado para os estudantes o saber dela sobre as plantas? é isso?
Oi Núria, boa tarde! Desculpe a demora em responder, esses dias tem sido muito corridos... rsrs
Bem, respondendo a sua pergunta, o Núcleo Capão surgiu de uma experiência em Educação Ambiental na escola onde trabalho, entre 2012: "As Escolas na Bacia"...
Em 2013 fomos convidados pelo Projeto Manuelzão para formar um Núcleo Manuelzão, a partir da proposta Manuelzão vai à Escola...
Essa demanda de formar/construir uma rede de parceiros faz parte da metodologia replicada pelo Manuelzão, no intuito de fortalecer as parcerias locais/globais...
A identificação de parcerias foi super importante pra começar a entender o território e buscar soluções ou apontar perspectivas pros problemas,
que na sua grande maioria são muito parecidos...
Agora, esse entendimento acabou nos levando a conhecer o SCBH Ribeirão Onça e o Comupra... Este último tem um trabalho fantás…
Foi inspirados no movimento do Comupra "Deixe o Onça beber Água Limpa", que começamos a replicar, através do Núcleo Capão, os mutirões de plantio, limpeza e grafite, em especial no Parque do Capão: área com 16 mil metros quadrados, prevista no Plano Diretor da cidade, q precisa ser implantada...
O nosso grande desafio ainda é envolver as escolas e sensibilizar a comunidade ribeirinha pra a necessidade de transformar o Capão em um parque ciliar...
Como o Capão tributários é tributário do Vilarinho, agora a ideia é reforçamos a Meta 2025 "Nadar, pescar e brincar no baixo Onça"...
Grande beijo
Roseli,
Cada vez que você me escreve fico mais curiosa com tudo o que me conta! Parece que são muitas pessoas envolvidas, muitas ações, muitas ideias, que riqueza!
Este projeto que me contou de 2012 chamado As Escolas na Bacia aconteceu em várias escolas da Bacia do Capão? Como eram as atividades, eram parte de alguma disciplina ou atividades extracurriculares? As atividades aconteciam com qual periodicidade?
Que incrível saber que o Núcleo de vocês se formou a partir da escola. Penso na escola como um ambiente muito potente dentro de uma organização social.
Como mãe, a escola é para mim um espaço onde é possível encontrar com outros pais e mães, trocar experiências sobre o cuidado, imaginar possibilidades de cuidado coletivo. A escola é uma grande rede de apoio na criação de minha filha. Agora na pandemia a rotina tem sido bem mais complicada por aqui. Saudade da escola! rs
Como arquiteta urbanista penso que é um espaço que está presente em todo bairro, onde diariamente um grupo de vizinhos necessariamente se encontra. Me parece um lugar muito potente para surgirem articulações de pessoas e mover desejos e ações no território.
Me parece uma estratégia incrível, essa que vocês propõem, de partir da escola para a mobilização e construção do Parque do Capão.
Já estão acontecendo alguma atividades na escola da região neste sentido?