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a mostra córregos vivos apresenta dicas para você ler, assistir e visitar
As águas do Brasil na mão do cassino financeiro – leia em outraspalavras.net
Caso do RJ aponta: bancos sem nenhuma experiência em Saneamento preparam-se para assumir controle dos serviços, em operações obscuras e de rapina. Acesso dos mais pobres fica ainda mais distante. Tarifas subirão. Mananciais ameaçados.
Em busca da vida – assista no youtube
O diretor chinês Jia Zhangke em 2006 dirigiu o documentário "Dong" sobre o pintor chinês Liu Xiaodong. Uma das locações se deu no local onde estava sendo construída a maior barragem de águas do mundo até então, a Três Gargantas, na China. Em movimento contrário à sua chegada com o pintor e a equipe de filmagem, assistiu a saída dos moradores das cidades que seriam submersas pela obra. O que formava a paisagem onde o documentário seria filmado eram os montes de detritos e alguns prédios vazios, ainda por serem demolidos. Comprometido com o estado das coisas de uma China que se quer modernizar, de dentro desse documentário surgiu outro filme, uma ficção, intitulado Em Busca da Vida. Ao invés de contar uma história tomada como real, que seria o processo de construção da barragem, o diretor Jia Zhangke realiza um movimento radical ao realizar uma ficção sem, no entanto, deixar de acompanhar o real em tudo que ele extrapola. A produção do filme se dá no instante dos acontecimentos, um movimento de abertura da imagem para que ela absorva parte do mundo. É nessa regência contextual que o cineasta de Fenyang constrói o seu próprio documento.
Filmando in loco e acompanhando o processo de desaparecimento de Fengjie, uma cidade de aproximadamente 2.000 anos, o filme chinês não se torna, apesar do contexto político, uma ‘arma de combate’ direta a essa violência, mas antes uma fabulação a partir da destruição do progresso e suas ruínas; um movimento de busca, em meio aos destroços já presentes, a construção de um olhar contrário à liquidez do projeto moderno da China a partir de narrativas daqueles que serão submersos. Como escreve Cecília Mello (2014), pesquisadora deste cineasta, ‘o cinema de Jia Zhangke é político não por denunciar uma realidade ou carregar uma mensagem, mas sim por construir uma realidade através de outra ‘partilha do sensível’’.
No Brasil, no estado de Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, a mostra Córregos Vivos aborda a mesma questão: contra uma Modernidade que quer apagar o território (seus habitantes e cotidiano), cobrindo o leito dos córregos, como na atual gestão das águas da cidade mineira, quais são as possíveis partilhas?
Francis Alyys: When faith moves mountains – assista em francisalys.com –, Don’t cross the bridge before you get to the river – assista em francisalys.com –, e Watercolor – assista em francisalys.com
O artista belga Francis Allys tem uma longa produção que em alguns momentos se desdobra em ações performáticas e pinturas que apontam para geopolíticas da natureza. Desde "Quando a fé move montanhas" feito em Lima, no Peru, em 2002, quando junto a Cuauhtémoc Medina e Rafael Ortega filma centenas de pessoas movendo centímetros de areia de um lado a outro com o intuito de mudar a montanha de lugar, Allys está interessado em saber como pequenas histórias podem gerar grandes imaginários geopolíticos outros, dados pela união, pelo compartilhamento. A terra e a água, matérias primas planetárias, são fonte para tais exercícios de soberania.
Em "Não atravesse a ponte antes de chegar à água" de 2008, o exercício é o mesmo: imaginar como escapar ou expor em sua perversidade noções políticas como território nacional e fronteira. Numa ponta da praia do Marrocos e na outra, na Espanha, uma corrente de crianças que se ligam metaforicamente unem Europa e África, conectadas pelo estreito de Gibraltar. O artista expõe as mortes de imigrantes (crianças abraçadas com seus pais) tentando atravessar a água que separa Europa da Africa; com barcos feitos de caixas de sapato nas mãos, aponta para um desejo de passagem, de conexão, de fuga.
Se sobrepormos a imagem de "Quando a fé move montanhas" com "Não atravesse a ponte antes de chegar a água", tal corrente é um chamado a uma reconexão. Uma volta a Pangéia, continente único existente durante a Era Paleozóica, um grande bloco de terras com rios em seu interior. Um grande comum de terras, potencialmente reescrevendo a geopolítica solo.
Em "Watercolor" ou "Cor das águas", vemos uma câmera filmando, na altura dos pés, o artista indo pegar as águas do mar Morto para misturá-las às do mar Vermelho. Ao misturar as águas desses dois rios localizados na fronteira entre Israel, Egito e Jordânia, faz referencia a um projeto existente de dessalinização das águas que unirá estes dois mares por uma grande tubulação de água a fim de recuperar o mar Morto. Não existe o mar de um ou outro, mas um grande Mar dado pela misturas das cores dos nomes.
Repensar valores, desmistificar fronteiras, repensar o que é comum, independente de qualquer ideia de nacionalidade é horizonte de discussão para uma questão cada vez mais planetária. Ao olhar as pinturas de Allys produzidas em conjunto com as ações propriamente ditas, vemos como as linhas dos mapas geopolíticos e a pequenez da figura humana desaparece frente ao azul das águas e a dimensão da terra.
Karim Ainouz: Missão Perséfone – assista em ims.com.br – e Viajo porque preciso, volto porque te amo – assista no youtube
"Acho que vocês deviam sonhar a terra, pois ela tem coração e respira" é a frase de Davi Kopenawa que finaliza o último filme dirigido por Karim Ainouz, "Missão Perséfone". Entre ele e "Viajo porque preciso, volto porque te amo", co-dirigido com Marcelo Gomes, são 10 anos de distância. No filme de 2010 temos o geólogo José Renato que fala das saudades de sua amada enquanto faz, por trinta dias, um trabalho de mapeamento, parte de uma "pesquisa geológica das estruturas tectônicas para implantação do canal de águas ligando a região do Xexéu ao rio das Almas". Nestes dias em que atravessa o Nordeste, os corpos d'água, sua geologia intrínseca e sua canalização são fios condutores de uma história de desapropriação de moradores e redesenhos da paisagem material do lugar. A promessa eterna de vários governos brasileiros de levar água ao interior do Nordeste subentende-se aqui em filmagens cortadas, narrativas em off e fotografias.
Saltamos para "Missão Perséfone".
Neste filme de 2020, o planeta Terra foi abandonado desde 2020 e seus habitantes dali se mudaram para a nova morada, Superterra. A missão Perséfone que dá título ao filme é justamente a volta destes ex-moradores, em 3020, a seu planeta natal, chamado no filme de planeta água, para fazer uma "uma arqueologia do planeta abandonado depois da queda do céu", termo último profetizado por Davi Kopenawa em livro homônimo. Entre imagens de arquivo da nave space X e ruas vazias de uma terra abandonada, aparece alguém vestindo um macacão para se proteger da radioatividade do ambiente, colhendo amostras dos viventes que ali ainda existem. O "ciclo tupi guarani" mencionado pela pesquisadora-narradora diz de uma civilização nova que respeita e compreende a multiversidade do conhecimento do tempo.
Entre os dois filmes e os tempos a que aludem, está a passagem de uma política da viagem pelo território para uma fuga-volta arqueológica ao mesmo. Da ciência usada para entender o que será apagado ou transformado pela canalização e desdobramentos territoriais a outra, aberta ao conhecimento indígena, vale ver quais imagens brotam do fundo da terra ou dos céus.
También la lluvia – assista no facebook
Quais os paralelos ou linhas de fuga de dois eventos distantes na história o cinema é capaz de produzir, a partir das imagens da água? No filme También la Lluvia, eventos distantes no tempo são colocados em rota de colisão: de um lado, a reencenação da invasão espanhola da América Latina por Cristóvão Colombo, com todos os requintes de crueldade, seja pela violência física contra os habitantes indígenas da terra ou a simbólica, dada pela sua catequização infligida pela igreja; e de outro, na Bolívia, a invasão corporativa que deflagrou a chamada Guerra da Água, no início dos anos 2000, onde o povo boliviano se insurgiu contra a privatização do acesso às águas. Ao invés de simplesmente filmar os dois eventos como histórias separadas, a diretora espanhola Icíar Bollaín habilmente constrói uma narrativa em que ambos os eventos se sobrepõem, desdobrando-se um sobre o outro, transformando-os em uma mesma história.
A colonização foi evento que inaugurou o sistema-mundo como conhecemos, globalizando e produzindo uma divisão internacional do trabalho onde há exploradores e explorados. A produção de uma permanente colonialidade produz e reproduz sobre novas condições tal sistema assimétrico de poder através da extração de corpos e recursos naturais, perpetuando tais disparidades até hoje. Das navegações europeias até a globalização, a água – estrada para o invasor, não importa se no século XVI ou XXI – é objeto de disputa geopolítica.
Discutir as águas que chegam às nossas torneiras, desde de onde vem e para onde vão, assim como a quem pertencem, não é uma discussão que depende de cidade a cidade, ou país a país. Torna-se cada vez mais urgente num momento como o atual, de roubo fantasiado de "privatização para tornar mais eficaz o Estado", entender tais relações e saber contra quem se luta ou contra quem sempre se lutou.